Recruta nº 23

E lá estava eu, de novo no gélido telhado, no qual permaneci horas, rindo-me da desgraça de John. O que é certo é que comecei a ter pena do rapaz, não se lembrou de tirar a venda, talvez tivesse medo de que lhe fizesse mal se a tirasse, fez ele bem. Abri a telha e voltei a descer, em silêncio. Caminhei lentamente para junto dele, evitando resperirar, para não denunciar a minha presença, e toquei-lhe na cara. O rapaz assustou-se, não devia estar à espera, afinal, já não me via há horas.

- Truz truz, amiguinho! Não me encontraste... Mas não faz mal, assim pode ser que te mate de uma vez, para podermos jogar os dois para sempre! Não ia ser giro! Onde queres que te morda? Vai doer, muito, por isso convém que seja num local com poucas veias e cartilagens, ou sangrarás até à morte... E eu não quero isso.

O rapaz permanecia calado, quando me ouviu dizer que o mataria, abriu os olhos de tal maneira que pensei que fossem sair de orbita. Como não respondeu, decidi ser eu a escolher o sítio pelo qual morreria, mas fiz questão de que fosse num lugar que o fizesse sofrer, muito. Aproximei o amarelo da minha boca para perto do seu pulso direito, cheirando-o e puxando-o até mim. Abri a boca e soltei a minha língua, que se encarregou de humedecer a pele dele, devido aos efeitos especiais que possuía, pude manosear a falsa língua através de um comando que tinha na perna, mas fi-lo de maneira a que ele não reparasse. E, para além do mais, a lingua era surpreendentemente realista. Enrolei a lingua no pulso do rapaz, fazendo questão de olhar para a cara dele e vê-lo sofrer. Afastei a cara do pulso dele, arrastando comigo a língua, que depressa voltou ao lugar, lambendo a minha boca que já salivava. Larguei-lhe o pulso e sentei-me ao lado dele na cama.

- Apesar de estar completamente tentada a morder-te, não o farei, comi recentemente, para tua sorte. - O rapaz suspirou de alívio. - Mas, não te entusiasmes, eu adoro comer... E dentro de pouco tempo volto a estar faminta, nessa altura só tu podes escolher se te como a ti... ou ao rapazito que, coitado, já está apuradinho, como eu gosto. Mas sou capaz de resistir ao meu desejo de comer algo de que goste, para comer algo que odeio.

Fiz uma pausa no meu discurso e deambulei pelo espaço de que dispunha. Sentei-me no parapeito da janela balançando o meu corpo de um lado para o outro.

- Amigo... sabes que... Infelizmente o teu destino está nas minhas mãos, bem, infelizmente para mim, porque eu adoro decidir coisas! Mas, bem... se te odiar, morres para sempre e vou garantir-me de que vais ter a pior morte que alguém poderia ter, mas se te adorar... aí morres, não completamente, porque ficas comigo e serás o que eu sou e ficaremos juntos, para sempre. Baaah, esta vida é complicada, decisões, decisões e mais decisões. - sorri-lhe - Bem, cabe ao teu comportamento aquilo que hei de te fazer.

Não sei bem o que tinha feito para ele reagir daquela maneira, só queria ser amiga dele, para sempre!

- Para começar diz-me o teu nome, não te quero chamar cão, nem tratar com um, como disseste. Só quero ser tua amiga, para brincarmos. Sabes, antes de ficar assim, há muitos anos, eu era uma criança feliz, mas... O HOMICIDA DO TEU AMIGO FEZ COM QUE ME TORNASSE O QUE SOU HOJE, ODEIO HUMANOS E ODEIO RAPAZES CHAMADOS JOHN! Brrrrr, só de dizer o nome do pendurado me arrepia, odeio... odeio o nome John... Mas bem, qual é o teu nome? Não sejas tímido, só quero ser tua amiga e até gosto de ti, apesar de seres um humano, mas disso podemos tratar mais tarde. - disse piscando-lhe o olho e sorrindo.

Levantei-me, ainda no parapeito e andei de um lado para o outro, olhando para ele. O que seria que lhe estava a passar pela cabeça? Estaria ele com medo, ou só a gozar comigo? Estaria eu a ser demasiado branda? Talvez a minha ideia de zombie bom zombie mau não estivesse a resultar, precisava de reajustar o meu plano.

Uns minutos depois de ter comido e descansado, voltei a olhar para a mesa e reparei que haviam sandes... Não sei o que se tinha passado com os meus olhos, mas juro que não haviam sandes nenhumas quando peguei no frango, que quando olhei também me parecia cozinhado! Talvez fossem alucinações de estar tanto tempo sem comer, ou talvez fosse magia, estava com um vampiro no quarto, já acreditava se me dissessem que os homens agora também podiam engravidar. Algo naquele vampiro me fazia pensar que ele não devia ter mulher, parecia estar a querer seduzir-me! Não sabia que os monstros também podiam ser pedófilos, que falta de respeito. Já não tinha fome, mas continuava com medo dele, se bem que agora estava mais preocupado com o meu rabo e com o meu pescoço, sabe Deus porquê. Ele decidiu jogar um jogo comigo, tinha de acertar no alvo, ou ele mordia-me o pescoço, naquele momento só me lembro de ter agradecido ao meu pai, que me deu um cromossoma Y, coisa que fez de mim um rapaz, e toda a gente sabe que os rapazes têm boa pontaria... Peguei numa das setas e fiz mira, apontando bem para o centro, acertei.
- Uh... se continuar a acertar não me fazes mal, certo? - perguntei, sinceramente estava com medo da resposta e esta estava a demorar, o homem só se ria maléficamente, comecei a sentir-me desconfortável e com medo que não cumprisse o que havia dito. Ordenou-me que continuasse a atirar, e foi o que fiz. Acertei em todos os outros alvos, pontaria era algo que em mim abundava, não para me gabar, mas era mesmo bom nisso, avé, aconteceu-me algo de bom, finalmente.

O rapaz acabou por dizer que se chamava Robert, eu sabia o seu nome todo por isso aceite, não me mentiu, era o suficiente. Perguntou-me ao que queria jogar, para ser sincera, não fazia a mínima ideia, tinha de inventar qualquer coisa, o plano não era ele ceder, queria que me fizesse frente, para o poder atormentar e para o pôr à prova, assim não havaia nada... De repente, ocorreu-me uma ideia, um pouco absurda, mas boa.

- Vamos brincar ao... atira-me da janela se tens coragem! Apetece-me, apesar de ter morrido foi uma experiência espectacular! Vá, atira-me! Os amigos verdadeiros fazem o que os outros lhe pedem por mais absurdo que seja!

O rapaz não parecia ter intenções de me atirar, apesar de, possívelmente me odiar, não parecia ser ao ponto de me atirar de uma torre. Aguardei uma acção por parte dele, foi o único momento em que me senti levemente aterrorizada, não sabia se ele me ia atirar ou não, mas de qualquer das maneiras havia uma surpresa para ele, uma boa e uma má, atirar-me ou não da janela ia decidir.

Deixou-me comer uma das sandes, para surpresa minha, afinal o senhor cumpriu com a sua palavra, subiu uns pontos na minha consideração (agora tinha 0 pontos). Comi a saborosa sandes, olhando para ele, não fosse fazer-me alguma coisa enquanto eu estava desprevenido. Assim que acabei de comer levantei-me, mas arrependi-me porque levei com uma seta no pescoço! (Uma pessoa já não pode comer em paz que é logo alvejada!) Não doeu muito, mas o sangue a escorrer incomodava-me e preocupava-me o facto de ter sido tão perto da jugular, se continuasse a sangrar, sem estancar a ferida provavelmente morria, ou desmaiava outra vez. Ia agarrar-me ao meu próprio pescoço, para tapar a ferida com as mãos, mas alguém teve a mesma ideia, mas fê-lo mais violentamente. Mais uma vez fui encostado à parede, a cara levemente confiante que mostrava ao comer e depois de jogar às setas, desapareceu, de um momento para o outro, assim que me senti em perigo novamente. Estaria eu a ser tão mau assim? Estava a fazer tudo o que ele pedia e a esforçar-me para ultrapassar os meus medo, o que estaria eu a fazer de errado? Voltei a ficar confuso e com medo, parecia uma criança no primeiro dia de aulas.
- Porque é que me fez isto? - perguntei. - Fiz o que pediu, nunca o provoquei ou algo assim e fez-me isto. Não é que doa, e um recruta está fisicamente preparado para quase todos os cenários, menos este e eu não sei se estou psicologicamente preparado para isto, eu sei que não me pode matar, mas há qualquer coisa que me faz desacreditar no que penso... - A expressão que o vampiro tinha também mudou, não percebi bem se estava mais enfurecido ainda, estava mesmo confuso. Depois das longas palavras que disse, gaguejando e tremendo, com a voz fraca devido ao medo, caí na realidade, percebi que não me podiam fazer mal alí, bem, pelo menos mal o suficiente para me causar a morte, agora uns leves danos físicos e psicológicos sim e era aí que me estavam a atingir. Tinham todos os meus dados, conheciam os meus pontos fracos e fortes, daí terem-me posto com um monstro, desafiando-me, sabiam que eu tinha boa pontaria e que não ia falhar nenhum alvo, basicamente sabiam tudo, eu estava só a ser uma marioneta nas mãos deles e estava a ceder. Tinha de mudar isso, como? Não sei.

Nunca me passou pela cabeça que o rapaz me quisesse mesmo atirar da janela, ele já nem estava a jogar, tinha uma navalha na mão e estava a ameaçar-me. Acabou-se o zombie bom, acabaram-se as oportunidades e brincadeiras, tinha de impor respeito no rapazinho. Fingi estar assustada e cedi à ameaça, caminhando de costas para a janela, acentuando a minha expressão de pânico. Quando estava suficientemente perto da janela e dele, parei, revirei os olhos e o branco que em tempos os pintava ficou negro, a minha cara de pânico transformou-se num sorriso sádico e o mais assustador que consegui, as veias da minha cara dilataram e soltei a minha lingua, dando-me um ar de louca do hospicio. John, o corajoso, tornou-se John, o aterrorizado, aproximei-me dele levantando os braços e baixando o tronco, enquanto virava a cara de modo a que a minha bochecha tocasse no meu ombro. Aproximei-me dele, rapidamente, e abracei a sua cintura, ele tentou dar-me uma facada na perna, mas para minha sorte acertou no comando que fazia a lingua mover-se, avariando-o, fiz-lhe uma rasteira e caí sobre ele, com todo o meu peso, usei as tecnicas de jiu jitsu que tinha aprendido para lhe torcer o braço até ele se render, coisa que não demorou muito tempo. Atirei-o para cima da cama, ele tinha dores no braço, não muito fortes porque não o quis magoar, mas eram suficientemente fortes para lhe causar sofrimento. Arranquei a faca do comando da lingua e reparei que vinha com sangue, a faca tinha-me rasgado a pele, o que era bom, dava-me credibilidade, assim ele não percebia que não passavam de efeitos especiais e tecnologias. Arranquei a língua falsa da minha boca, que se encontrava pendurada na mesma, já que estava estragada, e atirei-a da janela para que ele não percebesse que era falsa. Sangue falso começou a escorrer da minha boca e aproximei-me dele, mais enraivecida que nunca.

Neste jogo psicológico as minhas hipóteses de ganhar eram quase nulas, não sabia o que pensar nem o que dizer, limitava-me a olhar para ele, repugnado. Eu sabia que a recruta servia para nos preparar física e psicologicamente para qualquer situação, mas não estava a conseguir imaginar em que outra situação poderia passar pelo mesmo. De qualquer maneira tinha de o enfrentar, ele não me podia matar, mas eu podia matá-lo a ele. Óbvio que não o faria, nem o ia ameaçar ou coisa parecida, tinha de ser inteligente, fazer jogo psicológico com ele, assim como este fazia comigo, tinha de escolher bem as palavras que ia usar, ao mínimo erro era alvejado novamente e já me chegava um buraco no pescoço. Estava eu caído no chão e ele a lamber o meu sangue da sua mão, fiquei enojado, é que aquele sangue era mesmo verdadeiro, não era para beber, ele podia ter guardado, caso alguém precisasse de uma transfusão ou assim, que egoísta. Deixei-me ficar no chão e olhei para ele, não sabia ainda o que dizer, continuava com medo de toda aquela situação, o ambiente era medonho, ele era medonho, os adereços eram medonhos e não havia janelas ou portas por onde pudesse fugir, ou atirá-lo, estava preso. E foi aí que me lembrei que havia uma porta no chão, pequena, por onde ele tinha entrado para entrar na sala, estava trancada e provavelmente era ele que tinha a chave, se queria fugir tinha de lha tirar, o problema era como, mas se fosse esperto podia simplesmente esperar que a recruta terminasse e me deixassem sair. Mas seria isso que eles queriam? Que eu ficasse lá todo o tempo, sem fazer nada, simplesmente à espera que me deixassem sair? Provavelmente não, o mais certo era quererem que eu descobrisse a chave e saísse do quarto. E mais uma vez, não tinha hipóteses contra ele, se tinha boa perícia, também seria bom noutras coisas, e eu era só um recruta... Tinha de haver alguma coisa em que lhe pudesse ganhar e tinha de ter paciência e calma até a descobrir. Abri a boca e comecei novamente a gaguejar-lhe.
- Compreendo que que te queiras vingar da tua filha, mas... eu não lhe fiz mal nenhum... e li o diário dela, nunca seria capaz de lhe fazer isso...

Estava a fazer tudo mal, o que quer que fizesse só deixava o rapaz com mais energia e vontade de lutar. A raiva apoderava-se de mim, estava a ficar descontrolada e louca, naquele momento ocorreu-me matar o rapaz, mas infelizmente não podia. Não aguentava mais, cedi à minha fúria e deixei-a cuidar de mim, já não era eu quem controlava o meu corpo, não estava em mim. Peguei nos braços do rapaz e levantei-o, as suas pernas agrediam-me, mas nem senti, estava mais concentrada nas imensas ideias que tinha para o maltratar, o rapaz estava a abusar, a sua coragem e determinação de nada serviam contra a minha personalidade tresloucada e imprevisível. Atirei-o para o chão e gritei-lhe como nunca tinha gritado, tanto que senti a minha garganta sangrar, mas não me importava, ele ia sofrer.

- OUVE BEM MEU RAPAZ, QUIS SER TUA AMIGA E TU, BEM TU, PARA ALÉM DE UM PÉSSIMO AMIGO, MOSTRASTE SER FRACO! NÃO SE BATE NUMA MENINA, JÁ DEVIAS SABER, E MUITO MENOS SE ATIRA UMA AMIGA DA JANELA, ERA UM TESTE PARA TESTAR A NOSSA AMIZADE E TU, MEU AMIGO, TU... FALHASTE... E agora vais sofrer, vou fazer-te implorar por misericórdia, vais sofrer mais do que todos os teus colegas de recruta, bem, ou ex-colegas de recruta, ali o John não sofreu nada, comparado com o que os teus queridos colegas estão a sofrer. Mas tu, oh tu, meu caro John Robert, tu vais sofrer o dobro... não! Multiplica sofrimento por um milhão. É isso. Se saíres daqui vivo, és um sortudo meu amigo, estas preso numa torre com a tua melhor amiga e a tua pior inimiga, portas-te bem e eu controlo-me, portas-te mal e... fazes companhia aos teus amigos. E juro, por tudo, que te farei sofrer!

O rapaz, ainda no chão, estava pálido como nunca, depois do meu discurso inspirador, parece ter ganho alguma inteligência, pelo menos a suficiente para não se meter mais comigo, ou fazer algo estúpido. Peguei-lhe nas pernas e arrastei-o pela torre, fazendo questão de que a sua cabeça batesse em cada pedra que havia no chão, o rapaz contorcia-se e gritava de dor, sangue começou a escorrer-lhe da cabeça, não abundava, mas era o suficiente para manchar o chão e deixar rasto.

- Está calado, isso não doí! Isso é só para aquecer, nem imaginas o que vou fazer contigo, meu amigo! E se queres testemunhar dor verdadeira, atiro-te da janela, como o penduradinho fez comigo!

Voltei a pegar no rapaz e deitei-o no parapeito da janela e ordenei que não se movesse, ou morria. Procurei o lenço que tinha usado para lhe tapar a vista e amarrei as mãos dele, tirando de seguida os calções do cadáver, que usei para lhe amarrar os pés. Depois disso, cortei metade da minha camisola e usei-a para lhe tapar a boca, já estava farta de o ouvir. Ele não tinha como sair dalí, estava à minha mercê e podia fazer com ele o que eu quisesse. Procurei a navalha e limpei de lá o meu sangue, aproximei-me dele e fiz-lhe um golpe, não muito fundo na perna, como o que tinha feito a mim.

- Adoro navalhas, meu amigo!

Um jogo? Mas que jogo? O que é que era suposto eu fazer? Pensei que me deixaria em paz depois de ter sido simpático e ter mostrado compaixão pela filha... Sabia lá que jogo escolher, nem me lembrava de jogo nenhum, estava ensonado e ainda com fome. Só a mim, aposto que os outros recrutas tinham um monstro menos violento e vingativo. Tinha de escolher um jogo em que fosse bom e ele mau, o problema é que não sabia quais eram os pontos fracos dele. Passou-me pela cabeça o jogo do mata, porque como eu era pequeno e ágil, mas depois lembrei-me que ele tinha uma pontaria infalível. Lembrei-me do peixinho, acho que era o único jogo de cartas que eu sabia jogar, muito bem, mas não sabia se ele tinha cartas e duvidava muito disso. E por fim, surgiu-me uma ideia, genial, posso admitir. Um jogo em que ele era bom, mas que tinha tantas probabilidades de ganhar como eu.
- Eu sei um jogo. Eu penso em algo que esteja dentro da sala e se o senhor acertar nessa coisa, ganha. Se falhar, ganho eu. Tem 5 tentativas e como há poucas coisas nesta sala não é muito difícil. Provavelmente está a pensar que lhe vou mentir, mas juro que não, vou pensar numa coisa e não a mudo, prometo ser sincero, mas tem de confiar em mim, como eu confiei em si quando me prometeu comida da última vez. Cumpriu a promessa e eu tenciono cumprir a minha. Aceita?

Já não sabia como torturar o rapaz, tinha-lhe golpeado a perna e ele parece nem ter sentido dor, feri-lhe a cabeça com pedras mas nem isso o quebrou, era sem dúvida merecedor do meu respeito. Enquanto deambulava pela torre, tentando arranjar novas ideias para o torturar, recebo a informação de que já podia libertar o meu prisioneiro, mas como ele era meu, só o soltava quando eu quisesse. Ainda tinha mais umas leves torturas para ele, antes de o deixar voar do meu ninho, não o podia massacrar muito, mas queria divertir-me mais um pouco. Puxei-o pelos cabelos e falei-lhe ao ouvido.

- Amigo, sabes que gosto de jogar, não sabes? Claro que sabes! E sabes que o penduradinho nunca quer brincar comigo... Por isso tenho de brincar contigo, apesar de seres mau! Basicamente o jogo consiste em, pendurar-te de cabeça para baixo na forca, com mãos e pés atados e com uma venda nos olhos, tu tens de conseguir sair de lá, desatar-te e procurar a saída. Nesta torre só há duas entradas, a janela e o sítio por onde vim, a não ser que sejas excelente a escalar, se te aventurares pela janela, morres. Vou dar-te uma pista para encontrares a outra. Nem sempre o que parece verdadeiro o é, procura no céu o caminho para a saída, as aranhas serão as tuas amigas, só fazem teia nos sítios onde não se mexe há muito tempo. E pronto já chega de pistas.

Peguei no cadáver e atirei-o da janela, depois arrastei o John e pendurei-o na forca, de cabeça para baixo.

- Agora diverte-te amigo, talvez o destino nos junte de novo, mas por agora despeço-me de ti. - E saí da sala, por onde entrei, sem barulho para que o rapaz não percebesse onde era a saída.

Não chegámos a jogar o jogo que lhe propus, limitou-se a elogiar-me e pediu-me que bebesse o que havia no jarro, para que depois pudesse encontrar a chave que abria a comporta. Não poderia, eu, simplesmente derramar o líquido que o jarro continha? Teria de o beber todo? É que era imenso e não sabia lá muito bem e depois de tanto tempo ao ar... deveria estar quente e prestes a azedar. Mas, por outro lado sentia-me mal por não fazer o que pediu... olha, pensasse nisso antes de me atirar com uma seta para o pescoço. Peguei no jarro e atirei-o para o chão, partindo-o (derramar aquilo ia demorar imenso tempo visto que o gargalo era mais fino que resto do jarro e eu tinha pressa). Para além do estrilho que o jarro fez ao partir, ouvi-se o som de uma pequena peça de metal cair no chão, era a chave, peguei nela e corri até à porta, mas voltei para trás e enchi os bolsos das minhas calças com sandes, não sabia o que iria enfrentar a seguir. Coloquei a chave na fechadura e rodei-a, a porta abriu-se, olhei para lá e vi umas escadas, que desci. Pelos vistos estava num dos andares superiores do que quer que fosse aquele edifício, ou isso ou estava a ir para a cave, talvez lá houvesse alguma pista ou um caminho que me levasse à saída. Ao descer as escadas fui ficando cada vez com mais frio, as paredes eram feitas de pedra, que não devia estar muito bem isolada, o ar era gélido. Estava escuro, só haviam pequenas frestas a iluminar o espaço. Parecia estar num enorme corredor, sem qualquer outro caminho ou passagem sem ser aquele que eu seguia. De tempos em tempos havia uma curva, parecia estar a andar há horas e não estava a sair do mesmo sítio. Finalmente, depois de horas a andar sem parar, encontrei escadas, olhei para cima e vi uma imensa escuridão com pequenos pontos luminosos, era o céu, podia finalmente apanhar ar e libertar-me do stress por que tinha passado nos últimos tempos. Tinha alguma fome, mas preferi guardar a comida para depois. Encontrei uma torre alta no castelo e dirigi-me para lá, encostando-me à mesma, adormeci aí. Estava mesmo muito cansado, tinha de dormir, nem que por uns minutos apenas, procuraria os meus colegas no dia seguinte, quando tivesse as minhas forças recuperadas.

As horas foram passando e eu continuava a dormir, estava tão cansado que nem me lembrava de ter adormecido. Acordei com alguém a tocar-me no ombro, por momentos pensei que era ele outra vez e assustei-me, mas afinal era só um rapaz. A cara dele era-me muito familiar, já o tinha visto no campus e analisando pela roupa que trazia, era meu colega de recruta. Levantei-me e cumprimentei-o, perguntei-lhe se tinha fome, o rapaz assentiu, tirei do bolso uma sandes e dei-lhe. Enquanto ele comia, fomos andando pelo castelo, à procura de uma outra entrada, tínhamos de encontrar os restantes querubins, juntos seríamos mais fortes e teríamos mais hipóteses de sobreviver ali. Enquanto caminhávamos partilhamos as nossas histórias de clausura, eu, que pensava ter sido o mais maltratado de todos, pelos vistos não o tinha sido, o rapaz esteve com uma maluca que lhe cortou a perna, depois de me mostrar o ferimento usei a navalha que ele tinha para rasgar uma das mangas da minha camisola, visto que as suas roupas estavam imundas e ensanguentadas, e usá-la para lhe servir de penso e evitar que a ferida reabrisse. Estava frio, mas como estávamos cansados, acabámos por não o notar muito. Caminhámos durante imenso tempo, mas a nossa busca deu resultado, encontrámos um rapaz, que pelos vistos era amigo do John, acordá-mo-lo e, os três, fomos em busca de alguma entrada ou de um outro recruta. Encontrámos umas escadas que iam dar a um enorme salão, não estava lá ninguém nem haviam outras portas, só corredores, ao longe ouviam-se gritos que ecoavam pelas paredes do castelo, pareciam de uma rapariga, mas não havia portas por perto e presumi que onde quer que ela estivesse, não era ali perto.

Saí do quarto para quê? Mais valia ter ficado lá, ao menos só tinha de aturar o dentuças... Agora tinha de levar também com a filha dele, será que ela também me vai espetar dardos no pescoço? Enfim, voltei a estar preso, com duas pessoas, uma delas desconhecida, estava preso, sem luz e sem nada, só tinha as sandes que tinha trazido do quarto e a chave da comporta. A única diferença é que desta vez tinha dois amigos, sinceramente não sabia se isso era bom ou mau... Por um lado éramos mais e podíamos juntar forças para sair daquela situação, quando houvesse oportunidade, por outro lado, se nos quisessem torturar... ia ser horrível de ver. Tínhamos de ter calma e ser pacientes, não picar, não responder e fazer o que nos mandassem, assim não haveria razão para nos maltratarem.
- Então olá outra vez... Eu tinha medo que houvesse algum veneno na bebida e não estava a acreditar que ias deixar a chave no jarro. Desculpa, devia ter confiado. Mas se voltaste só para te vingar de mim, podes deixá-los ir, nem os conheço e já sofreram o suficiente. Presumo que a adorável rapariga seja a dona do diário que li, prazer.
Tentei aliviar a tensão que pairava e acalmar todos um pouco, mas para ser sincero, vê-lo com as setas na mão incomodava-me, se me alvejou sem nada ter feito, agora que tinha uma razão estaria capaz de me matar, mas não podia. Infelizmente não sabia com o que contar, estava espantado por os ver aos dois e, sinceramente, não sabia de quem ter mais medo. E tendo em conta que um de nós tinha uma navalha e a rapariga matou montes de pessoas com uma arma semelhante... Não sabia o que esperar, mas tínhamos de ser inteligentes, não podíamos simplesmente começar a insultá-los ou provocá-los, afinal de contas estava-mos na recruta e eles tinham de nos testar até ao limite, um dos testes seria, sem dúvida, avaliar as nossas reacções sobre pressão e a maneira como lidávamos com os problemas.